Coluna Tadeu Marcato: Memórias nascentes, presenças ausentes
Mais um colaboração do professor Tadeu Marcato, mostrando pequenos diálogos com os seus filhos, mas grandes reflexões!

Há dias que o Raoni e o Cauê me pedem uma hortinha com alface, cenoura, “bróquis”, docinho e outras tantas coisinhas que eles gostariam que nascessem do chão e fossem acessíveis a qualquer momento.
Procrastinei enquanto pude, quando não tive mais argumentos me rendi. Fui ver vídeos na internet, perguntei para algumas pessoas, comprei as coisas e fomos fazer nossa hortinha.
Enquanto eu afofava a terra com uma machadinha de horta, perguntei para o Cauê se ele sabia o que eu estava fazendo e antes de ter a sua resposta fiz um transporte no tempo – esse ser abstrato e concreto, longe e perto, da outrora e do depois – e acessei algumas memórias.
Logo, me encontrei com Paulo Freire que me falou “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Lemos o mundo desde que estamos nele, tudo que é observado ao longo do processo de formação fica registrado na memória e isso nos acompanha ao longo da vida, e agora, aqui na minha frente, estava a própria criação de memórias de um ser de quatro e outro de três anos, sobre o fazer algo, neste caso, uma hortinha com alface, cenoura, “bróquis”, docinhos e tais. Lembrei de um poema, Memórias nascentes, escrito quando o Raoni tinha menos de um aninho e publicado no meu livro Descompasso (2016) que apresento a vocês:
vejo as memórias/se construírem como fotos/através do seu olhar/que fita a sala, os livros, os atos/e escala cada canto/olhar que não se cansa/de olhar tanto
Esse encontro com Freire foi a escada para outra viagem, mais longa, remota, na verdade ele que me conduziu, na velocidade do que é atemporal, mergulhei em águas calmas do passado e lembrei de quando eu tinha três ou quatro anos. Um sorriso me escapou no canto da boca, brotou em meu rosto e conforme lembrava, vivenciava aquele momento, novamente, através de todo cenário que a
existência me proporcionava no aqui e agora. Essa memória se enroscava com a prática do presente, eu, nesse momento, pai de duas crianças aprendendo junto delas a fazer uma horta e cultivar as boas lembranças.
Essa fenda no tempo, aberta pelas palavras de Freire, surgiu com tanta intensidade que me transportou até o meu avô materno, homem nascido na década de 1910, qualquer saidinha lá estava o “vô Gusto”, sapato engraxado, terno bem cortado e um chapéu modelo diplomata de feltro, objeto que tenho até hoje, mas a principal herança, sem hesitação, é a imaterial. A propósito, eu era chamado de “Gustinho” pelos moradores das redondezas, devido a algumas semelhanças com o meu avô.
Semana passada, 16 de junho de 2020, fez vinte e seis anos do seu falecimento, e a machadinha cega, dada por ele, que me colocava, aos quatro anos, como seu “ajudante” na lida com a terra renasceu novamente em minhas mãos. Nesse momento, a memória que me afagou foi a de sua voz me explicando sobre as plantas e suas propriedades e, além disso, a de um ser subterrâneo, o Cauê chamaria de gosmento, que surgia na superfície a cada machadada que eu disparava na terra.
O “vô Gusto” não leu Paulo Freire, mas me ensinou, na prática, sobre o afeto, também não conheceu meus filhos, porém, nessa tarde de inverno, veio dar uma conferida na horta e no afeto.
– Papai, papai, o que você perguntou para o Cauê, o que foi?
– O que foi, Raoni? Perguntei, né? Me desculpe, o papai deu uma viajada por aqui, quero dizer, por lá, quando o papai tinha a sua idade. Perguntei se o Cauê sabia o que papai estava fazendo na terra.
O caçula prontamente respondeu com toda verdade que só se tem quando criança:
– O papai “tá” acordando a terra, ué!
– Sim, filho, o papai está acordando a terra; e as lembranças; e os aprendizados; e o amor; e a vida…
Tadeu Marcato é professor de Filosofia e atua na Secretária de Educação (SP). Desenvolve desde 2018 o projeto “Ensino de Filosofia: A poesia e a Filosofia como ferramentas para a emancipação do indivíduo com foco na prevenção à dependência química”. É poeta e escritor autor de quatro obras: Maiêutica poética (2015); Descompasso (2016); Descanso do caos (2017); I Antologia poética ALR (2019) – esta última, fruto de um trabalho realizado em sala de aula com alunos do Ensino Médio. Em 2019 colocou em prática o projeto “Poesofia crônica na prevenção” na rede de ensino municipal (Araraquara/SP).
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Email: tadeu.marcato@hotmail.com
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Amanda Araújo é jornalista com experiência na área de digital há mais de 10 anos. Já escreveu para importantes portais do Brasil, já fez cobertura de eventos online e foi editora de um conceituado site de Bauru, entre outras atividades. Hoje é fundadora e editora-chefe do portal Comunica Araraquara.